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À sombra do acaso

Embora exista a atuação de algumas entidades, a vivência de crianças e adolescentes nas ruas do Recife parece aumentar cada vez mais. Afinal, o que leva tantos meninos e meninas a essa realidade?

Não é preciso ter hora ou lugar. Basta dar uma boa circulada pelas ruas da cidade para perceber. Isto é, quando se percebe. Para os que moram no Recife e na Região Metropolitana, não é novidade ver adolescentes e crianças vivendo pelas ruas. Pedindo esmolas nas esquinas ou morando sob marquises, alguns desses jovens estão na companhia dos pais; outros estão sós ou com adolescentes da mesma idade. Por mais que cenas como essas pareçam comuns, no fundo, essa realidade incomoda a população, fazendo-a se questionar como esses jovens foram parar ali e o que pode ser feito por eles.

Apesar de não haver uma resposta direta para a pergunta, a desigualdade social dentro do Estado parece ser um dos maiores motivos. Segundo o Censo 2010, Recife tem aproximadamente 1,5 milhão de habitantes. No entanto, a pobreza incide sobre 39,46% dessa população, o que aponta uma renda per capita mal distribuída. Na última pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2003, O Índice de Gini da cidade – que, variando de zero a um, mede o grau de pobreza e desigualdade de distribuição de renda – é o mais alto dentro de Pernambuco, atingindo 0,49.

Em consequência da pobreza, muitas pessoas se veem obrigadas a ir às ruas para conseguir uma maneira de sobreviver. Nesse meio, crianças e adolescentes, expostos ao perigo, sem proteção alguma, formam um grupo expressivo que engorda os números da desigualdade social. O Censo e Análise Quantitativa de População de Rua, realizado em 2005 pelo Instituto de Assistência Social e Cidadania (Iasc), da Prefeitura do Recife, mostrou que 1.390 pessoas não tinham domicílio e moravam nas ruas, sendo que somente 185 delas estavam abrigadas em algum tipo de projeto. Do total, 502 pessoas, quase um terço da população de rua, correspondia a pessoas entre zero e 18 anos.

Já outra parte das crianças e adolescentes de rua é incitada pelos próprios pais a ir às vias públicas. Quando estão na escola, se dividem em dois expedientes, um para o estudo e outro para conseguir dinheiro. “Cada dia mais aumentam os casos de pais negligentes que permitem que seus filhos fiquem nas ruas”, diz Denise Farias, conselheira tutelar da RPA 1. À sombra do medo e da extrema necessidade, os jovens não veem alternativa a não ser permanecer sem destino.

A escola, na grande maioria das vezes, perde seu valor, já que não oferece retorno financeiro. É preciso encontrar uma forma de sobreviver, seja na mendicância ou no roubo. “Muitas crianças têm domicílio e persistem no vínculo casa-rua. A mãe diz para o garoto conseguir dez reais e, se ele não arranjar, quando ele voltar, apanha. Então o menino vai para a rua e, com medo, ele só volta para casa quando conseguir o dinheiro”, explica Sônia Proto, coordenadora do NOFE, Núcleo de Operações e Fiscalizações de Entidades responsável pelo abrigamento de menores. “A rua se torna o refúgio para as crianças que são violentadas física e psicologicamente”, conclui.

De acordo com o Código Penal, é crime, por parte dos responsáveis, deixar de promover a educação e a proteção de crianças e jovens menores de 18 anos, permitindo-os permanecerem nas ruas. No entanto, na prática, a situação fica fora de controle, devido às muitas dificuldades que existem para combater a vivência de rua e trazer esses jovens de volta a seus lares. “Não utilizamos mais a expressão criança de rua. O que existe, hoje, na maioria, são crianças nas ruas, que perambulam, andam pelas ruas”, afirma o juiz Elio Braz, da 2ª Vara da Infância e da Adolescência. Além da pobreza, segundo ele, boa parte dessas crianças tem casa, mas está nas ruas também por outros motivos. “Algumas vezes, essa criança vai para a rua por falta de uma autoridade, ou até mesmo para fugir dessa autoridade, se sofrer algum tipo de violência”, diz o juiz.

Para Breno Albertim, psicólogo do Iasc, que trabalha diretamente com jovens, a violência em casa é determinante para a fuga de adolescentes e crianças. “Em muitos casos, o jovem não tem pai ou tem um pai ausente, e a mãe possui outro companheiro, que tem conflitos com a criança. Então, por questão financeira, muitas vezes, ela não abre mão do parceiro. Isso gera uma mágoa enorme e leva os jovens às ruas”, afirma.

O QUE DIZ A LEI

Antes mesmo de se analisar o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Código Penal já prevê crimes contra menores:

Abandono Material (Art. 244): Deixar, sem justa causa, de prover a subsistência do cônjuge, ou de filho menor de 18 (dezoito) anos ou inapto para o trabalho, ou de ascendente inválido ou maior de 60 (sessenta) anos, não lhes proporcionando os recursos necessários ou faltando ao pagamento de pensão alimentícia judicialmente acordada, fixada ou majorada deixar, sem justa causa, de socorrer descendente ou ascendente, gravemente enfermo.
Pena: Detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa, de uma a dez vezes o maior salário mínimo vigente no País.

Abandono Intelectual (Art. 246): Deixar, sem justa causa, de prover a instrução primária de filho em idade escolar.
Pena: Detenção, de 15 (quinze) dias a 1 (um) mês, ou multa.

Art. 247: Permitir alguém que, menor de 18 (dezoito) anos, sujeito a seu poder ou confiado à sua guarda ou vigilância:
I - frequente casa de jogo ou mal-afamada, ou conviva com pessoa viciosa ou de má vida;
II - frequente espetáculo capaz de pervertê-lo ou de ofender-lhe o pudor, ou participe de representação de igual natureza;
III - resida ou trabalhe em casa de prostituição;
IV - mendigue ou sirva a mendigo para excitar a comiseração pública.
Pena: Detenção, de 1 (um) a 3 (três) meses, ou multa.

DE FRENTE COM O INIMIGO

Uma vez afastados de seus direitos, crianças e adolescentes nas ruas ficam à mercê da própria sorte e expostos a todo tipo de perigo. É ali que surgem dois inimigos fortíssimos que, em conjunto, têm força suficiente para impedir o retorno dos jovens a uma realidade condizente com sua idade. Drogas como maconha, cocaína e, principalmente, crack vêm atingindo crianças e jovens com grande impacto. Em vários pontos da cidade, como nas Praças Sérgio Loreto e Joaquim Nabuco, e no Forte das Cinco Pontas, existem grupos de jovens reunidos para consumir a droga. “É uma questão de alta vulnerabilidade social causada pelo crack.

Temos vários casos de crianças que estão nas ruas porque os pais são viciados em crack e também estão na rua. Venderam tudo dentro de casa, inclusive a própria casa, para alimentar o vício”, afirma Elio Braz.

Em casos mais graves, a própria criança é a vítima do crack. Existem casos de meninos com menos de oito anos já viciados na droga, que é uma forma impura da cocaína. Ainda há indícios de uma nova droga, o oxi, que tem efeitos mais poderosos e letais que o crack. “A gente trabalha com algumas instituições em que 100% das crianças tem envolvimento com o crack, ou ela está consumindo ou traficando. Alguns jovens também estão lá devido a ameaças de morte por causa das drogas”, diz Sônia Proto.

A luta pelo dinheiro para alimentar a família e o vício agregam uma consequência a mais, além de mendicância e roubo. Meninos e, especialmente, meninas vêm sendo explorados sexualmente para conseguir dinheiro. Em lugares como na Avenida Mário Melo, tarde da noite, meninas menores de idade vestidas como adultas se prostituem por valores irrisórios. “Há garotas se prostituindo a dez reais, que é o valor de uma pedra de crack” afirma Elio Braz. Algumas já são maiores de idade, mas o tipo físico frágil e debilitado por conta do crack se torna um atrativo a mais para os clientes. “Antigamente as meninas diziam que já tinham 18 anos para poder se prostituir. Hoje, é o contrário. Quando elas já são maior de idade, dizem que tem 14, 15 anos para atrair os clientes, que, em geral, são homens adultos, de classe média, em carros, muitas vezes, de luxo”, lamenta o juiz.

A LUZ NO FIM DO TÚNEL

Diante do estado de calamidade em que se encontram centenas de jovens nas ruas do Recife, a dúvida surge sobre o que pode ser feito por essas crianças e adolescentes. À mercê da violência e do abandono, a dificuldade em trazer os jovens de volta a uma vida de qualidade é grande, mas não se pode afirmar que é impossível. De acordo com o Nofe, existem atualmente 20 instituições, entre governamentais e não-governamentais, que abrigam jovens de diversas faixas etárias que estão sem lar. No entanto, a atuação depende também de outros atores municipais. No caso, a Gerência de Polícia da Criança e do Adolescente (GPCA) e os Conselhos Tutelares participam no recolhimento de jovens nas ruas. Em alguns episódios específicos, até mesmo a criança procura os órgãos em busca de abrigo.

Depois de recolhidos, os jovens são em geral enviados para os abrigos, onde ficam em caso de não terem família ou residência fixa. “Quando eles entram na instituição, ela tem 24 horas para comunicar o Nofe. Nossa função é justamente fiscalizar os abrigos, fazer a ponte entre a instituição e o Poder Judiciário, que vai poder interceder por aquele jovem”, diz Sônia Proto, que alega também que nem sempre é simples conseguir um lugar pra a criança ficar. “Alguns desses espaços são muito excludentes. Eles colocam perfis de crianças que eles aceitam, enquanto certos jovens não se encaixam em nenhum perfil. Já tivemos um caso de uma menina que estávamos tentando abrigar, mas ela não se enquadrava em nenhuma instituição”, afirma Sônia. Mesmo quando as crianças estão abrigadas, as dificuldades ainda persistem. “Não dá pra trabalhar só com o jovem confinado. Como ele já vem de situação de rua, a maioria consome drogas, e a instituição não tem política contra isso. Por isso, eles sentem a necessidade de voltar às ruas para buscar a droga que está faltando e permanecem sempre nesse movimento de acolhimento seguido por evasão. É preciso mais atrativos para mantê-lo ali”, diz ela.

Caso uma família seja detectada, é iniciado um trabalho para tentar inserir o jovem novamente. Breno Albertim, além de psicólogo, gerencia as unidades Recifazer e Recicriar, um dos muitos projetos da Prefeitura do Recife. Localizados na Imbiribeira, eles funcionam em conjunto. Diferente dos abrigos, o espaço é um equipamento de atração, que mantém cerca de 20 jovens em caráter semiaberto. Com a ajuda de assistentes sociais, o projeto realiza atividades elucidativas para ocupar as crianças e adolescentes e oferece orientação psicológica para que, aos poucos, eles retornem a seus
lares.

De caráter provisório, as unidades procuram sensibilizar em vez de impor limites. “O psicólogo vai focar a escuta para procurar como se encontra o indivíduo, a relação com a família, com a comunidade, saber se ele tem alguma relação com drogas. Os assistentes sociais buscam meios de fixar o jovem na comunidade, procuram atrativos para ele, atividades que ele possa fazer, projetos de ONGs dos quais ele possa participar”, diz Breno. De acordo com ele, cada caso tem seu próprio tempo, podendo ser solucionado em curto, médio ou longo prazos. “A dificuldade de aceitar o limite da família é grande. A gente faz a visita para conversar com a família, o jovem passa um tempo em casa e, depois, volta pra cá, até que os intervalos entre uma visita e outra vão diminuindo, e o jovem vai ficando mais dias em casa, até que ele possa voltar de vez”, explica o psicólogo.

Quando existe envolvimento com drogas, os Centros de Atenção Psicossocial – Álcool e Drogas (CAPs – AD) entram em parceria para tentar combater o vício, com atendimentos e uso de alguns medicamentos. Na teoria, não existe política efetiva que combata a droga especificamente com crianças e adolescentes, pois o CAPs é mais direcionado para jovens a partir dos 16 anos e adultos. Apesar do tratamento não ser específico para a idade, os resultados têm surtido efeito nos últimos tempos. “Alguns CAPs já estão se adequando para atender crianças usuárias de crack. Uma parceria entre a Prefeitura e alguns hospitais locais está disponibilizando leitos e tratamento voltados para essas crianças”, afirma Breno.

Mais do que combater as consequências, a preocupação deve se voltar também para as causas. É preciso haver políticas que trabalhem também os pais, para evitar que os filhos fiquem nas ruas. “Os Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) executam a proteção básica de caráter preventivo dentro das comunidades. Mas no Recife deveria haver mais unidades, porque existem muitas famílias. Por isso, não dá conta. Além disso, a estrutura não é ideal. É boa, mas pode melhorar”, opina Breno.

Para o juiz Elio Braz, a grande chave é incentivar a profissionalização. “Os programas sociais têm que ter a porta de entrada e também a porta de saída. E essa saída, sem dúvida, é a profissionalização”, diz o juiz. Para ele, é preciso conscientizar as famílias de que não devem se acomodar com os programas sociais. “Recife é uma das cidades que paga mais pelo Bolsa Família, cerca de um salário mínimo por até dois filhos. No entanto, já ouvi mãe dizendo que Lula a aposentou. Isso não existe. É preciso querer melhorar”, enfatiza Braz.

OS CASOS

Joana*, 13 anos. Uma das muitas adolescentes que consumiam crack. Asmática desde nascença, a garota foi internada diversas vezes com crises respiratórias. Apesar das tentativas de sensibilização, a jovem sempre voltava para a rua para se prostituir. Aquele era o meio que ela havia encontrado para sobreviver. Era através de “os tarados” - como ela mesma dizia - que conseguia algum pouco dinheiro.

Carlos* foi recolhido com dez anos. Mais do que estar na rua, o garoto participava de uma rede de corrupção de menores, no interior de Pernambuco. Mas, na verdade, ele não participava do grupo - ele o gerenciava. Carlos agenciava garotas entre oito e 14 anos, incluindo a própria irmã.

Mateus* foi encontrado no bairro de Boa Viagem. A única informação que divulgou é que tinha vindo do município de Palmares. Após muitas investigações, uma propaganda de sensibilização na TV chamou atenção de sua avó, que morava em outra cidade. Descobriu-se, por fim, que Mateus havia sido sequestrado de sua cidade, abusado sexualmente e abandonado por um homem estranho na capital.

Paula* nunca teve um lar. Sua mãe, que já era moradora de rua, estava grávida dela quando um ônibus a atropelou, em Olinda. Do acidente, Paula nasceu. Mesmo tudo correndo bem, a mãe de Paula se dirigiu à rua do jornal Diario de Pernambuco, em Santo Amaro, local onde reside até hoje com a filha. A garota nunca conseguiu ser abrigada.

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